quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
A tradição do fumo em corda
As mãos calejadas do agricultor Pedro Wermann se esfregam para desfiar as lascas da corda de fumo que acaba de sair do bolso de sua camisa; é hora da pausa, de descansar à sombra e deixar o pensamento perambular. Com a prática de quem já executa o mesmo ritual há quase meio século, ele molda a fina folha de palha de milho seca até que todo o fumo depositado sobre ela se espalhe de maneira uniforme. Depois, a enrola, num único movimento. Debaixo da árvore plantada no gramado de sua casa, na localidade conhecida como Cascalheira, no bairro São Caetano, Wermann preparava o terceiro cigarro de palha daquela tarde quente de sexta-feira.
A fumaça que verte do palheiro Wermann não traga, só segura na boca. Irá fazer-lhe ainda mais mal caso aspire, o médico disse. Wermann fuma desde os 20 e sabe que terá de deixar o vício para ir muito além de seus 65 anos. Quer viver tanto quanto o sogro, que chegou aos 88. Fumando desde os 18, o velho deu sorte - e vivia em uma época em que a comida e os hábitos eram menos sedentários.
Com as campanhas contra o fumo e a conscientização da importância de hábitos saudáveis, o cigarro preparado com palha e fumo em corda está fadado a ser deixado para trás, até mesmo para pessoas como Pedro Wermann, lembrado entre os companheiros de canastra nas bodegas em função do gosto pelo pito. Se extingue um hábito que já trouxe muitos problemas de saúde – inclusive para a mulher de Wermann, uma fumante passiva desde criança -, mas extingue-se também uma das tradições mais arraigadas ao interior.
“Quase todos que fumavam tiveram que parar por pedido do médico ou já morreram”, diz Wermann. Sidélio Friedrich, vendedor da loja Fleck há 27 anos, confirma: “Um tempo atrás vendíamos pelo menos 150 quilos por mês, agora é difícil chegar aos 40.”
Praticamente todo o fumo ainda produzido em Arroio do Meio provém de Picada Arroio do Meio e Linha 32. O número reduzido de consumidores, também fez diminuir o número de pessoas que plantam. Mas no morro Canudos, em Picada Arroio do Meio, o casal Juraci, 56, e Roveno Werner, 62, continua levando adiante a tradição, da mesma forma que os pais de Juraci, ambos com mais de 80 anos, faziam.
Juraci mora no morro Canudos desde que nasceu. Só mudou o lado da rua e trocou a casa de madeira por uma de tijolos. A casa velha, agora, é usada para secar as viscosas folhas de tabaco colhidas na roça a poucos metros dali. Roveno veio de Dona Rita, onde moravam os pais. Como brinca a bem humorada Juraci, “ele não se importou em fazer o sacrifício de subir o morro.” Logo pegou os macetes e viu o quão trabalhoso é o processo do plantio de fumo.
Nessa época do ano, o casal Werner acorda cedo para tratar os animais e tirar leite; depois, pelas 9h, começa a colher as folhas dos pés de tabaco. Do plantio à venda das cordas, o trabalho leva praticamente todo o ano. Em junho, são plantadas as mudas. Depois, em setembro, elas ganham a roça, com cuidado de ficar pelo menos um metro de distância uma da outra para se desenvolverem.
A roça fica bem no topo do morro Conventos, de onde a vista tira o fôlego do interlocutor. “Tem que ver à noite, é bem mais bonito. Dá pra ver até Lajeado”, gabava-se Roveno, enquanto destrinçava um pé de tabaco, em uma manhã de quinta-feira. E Juraci, com a habilidade de quem já lida com o fumo desde criança, amontoava algumas dezenas delas nos ombros para estocá-las.
As folhas são tiradas do pé aos poucos, e a colheita leva cerca de um mês. Depois que secaram no cômodo maior da antiga casa da família de Juraci, as folhas, trançadas, formam as cordas. Elas terão de ser enroladas em um sarilho e curadas ao sol por até três meses, para escoar as substâncias que deixar as folhas gomosas e reduzir de diâmetro. O problema é quando começa a chover. “Aí a gente tem que largar tudo e sair correndo recolher”, conta Juraci.
O fumo plantado em junho do ano passado poderá ser vendido a partir de maio. E em junho uma nova lavoura de fumo terá de ser plantada.
A comercialização das cordas de fumo é a maior fonte de renda da família Werner. Os três mil pés plantados no ano passado em meio hectare devem render cerca de 300 quilos de fumo já na corda. “Dá muito trabalho, mas é quase a metade de tudo que a gente ganha. Como não vai veneno, dá pouco prejuízo. Sai bem mais barato do que plantar o milho pra silagem, que precisa de adubo e ureia”, explica Juraci.
O produto é vendido ali mesmo, para pessoas que vão buscar de carro. Gente que compra para si mesmo, como Pedro Wermann, ou que pretende vender adiante. “Os caras gostam bastante do nosso fumo. Tem uma pessoa que vem lá de Forquetinha só pra comprar da gente”, diz Roveno. O preço do quilo gira em torno de R$ 25.
Os filhos de Juraci e Roveno já começam a implicar com os pais porque eles continuam se desgastando na roça, mesmo depois de aposentados. “Mas vamos fazer o quê? Sentar e esperar a vida passar que não vai ser”, questiona o vigoroso Roveno. Mas logo o casal terá de descansar e apreciar a boa vista do morro Canudos do pátio de casa, não da lavoura de fumo. Com sua parada, mais um pouco da cultura do fumo em corda na região irá virar fumaça – como o cigarro de Wermann.
Assinar:
Postagens (Atom)