terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A morte de Linha Natal


Da década de 1960 a 2008 o mundo ganhou três bilhões de habitantes. Só no Rio Grande do Sul, o aumento foi de cinco milhões de pessoas. Mas em uma pequena comunidade, incrustada nos morros, entre as divisas de Capitão, Travesseiro, no Vale do Taquari, o êxodo nocauteou as estatísticas demográficas tradicionais. Linha Natal abrigava mais de 60 famílias e centenas de moradores quando a Internet ainda era um devaneio tecnológico. Hoje, são apenas duas.

A palavra natal deriva do latim nascer. Mesmo assim, o que ocorreu em Linha Natal foi exatamente o contrário: o fim de um pequeno grupo social e de toda sua história. Em meio ao matagal, em uma área inacessível a automóveis, a cerca de 10 quilômetros do Centro de Capitão, é possível observar as ruínas de uma vila que se extinguiu. Restaram as paredes da antiga capela, os alicerces da escola 25 de Dezembro e alguns túmulos no cemitério. O campo de futebol que divertia os moradores nos domingos já não pode ser distinguido. Foi sufocado pela capoeira.

Na fachada da igreja lê-se data de sua construção: 11 de janeiro de 1911. Naquele tempo ainda não se pensava em luz elétrica na Linha Natal. Mas, 50 anos depois, ela, responsável por todo o desenvolvimento do último século, seria o grande carrasco. Quando a energia chegou às outras áreas da região, os antigos moradores abandonaram Linha Natal. Optaram pela vida longe da antiga comunidade para não continuar à luz das velas.

A maioria das propriedades ainda pertence às mesmas pessoas. Os cabos da companhia de energia foram instalados há dois anos e agora as terras - antes totalmente abandonadas - começam a abrigar alguns aviários e abrem perspectivas econômicas e sociais. Para o ex-morador Aventino Biasibetti, a recente construção de seu criatório de frangos é mais do que uma fonte de renda - é uma viagem ao passado. “Vou pra lá pelo menos uma vez por semana. Senão, fico com saudades. Meu pai foi presidente da comunidade de Linha Natal, ajudou na construção da igreja e da escola. Aquele lugar me traz lembranças do futebol nos potreiros, da história da minha família.”


Mundo particular


Ilmar Boni e Nelcir Zambiasi são os dois únicos moradores de Linha Natal. Zambiasi é acanhado, não se entusiasma em diálogos com estranhos (“Vai atrair os ladrões”). Ele diz que já morou em cidades maiores, mas preferiu o retorno ao interior para uma vida tranqüila. Vive dos lucros do aviário que tem ao lado de casa de alvenaria.

Ilmar Boni é mais alberto ao papo. Diferente de Zambiasi, passou todos os 42 anos de sua vida em Linha Natal. Ali estudou – até a quarta série – e fez sua primeira comunhão. A casa onde de madeira, sem pintura, com quatro quartos e poucos móveis, tem quase um século de existência. Pertencia antes a seus pais. Por que não se casou? Por que não teve filhos? Ele não fala. Talvez nem saiba. Por que a vida tão solitária, não sente saudades? “Em qualquer lugar do mundo eu teria que trabalhar igual. Então não tenho vontade de sair daqui”, ele me responde. E da morte o senhor não tem medo? “Não adianta ter. Tudo vai ter um fim mesmo, não importa onde eu esteja”.

Seu realismo diante da vida impressiona. Faz lembrar Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, que não teve filhos para “não deixar a nenhuma criatura o legado da miséria humana”. Seus irmãos debandaram de Linha Natal, foram à capital em busca de emprego em restaurantes, mas voltaram sem os objetivos cumpridos. Já ele só sai para encontrar os amigos nas bodegas e para as esporádicas visitas à família. O que Boni precisa para viver ele tem na velha casa de Linha Natal.

Boni é o tipo de pessoa que não se importa com as roupas. Suas havaianas encardidas são de cor diferente, um azul e um preto. Sua camisa tem a manga rasgada no ombro direito e descosturada no esquerdo. Apesar da despreocupação com a aparência, Boni não gosta da idéia de ser retratado. Cada vez que a máquina fotográfica lhe é apontada, esconde o rosto com o boné e solta: "Maah queee", com sotaque italiano.

O hermitão mantém seus poucos gastos com a venda de lenha. Cobra 60 centavos pelo quilo dos troncos de eucalipto que ele passa o dia serrando. Em casa, Boni tem vários animais. Gatos, cachorros e galinhas adornam o pátio da velha casa. Quais os nomes dos bichos? "Eles não tem nome. Não dou bola pra eles."

Seus companheiros em casa são apenas um fogão a lenha, a geladeira e o pequeno rádio a pilhas, sempre sintonizado na Rádio Independente. O locutor Paulo Rogério dos Santos e seu Bom Dia Rio Grande são o contato diário entre o lenhador e o mundo externo. Boni bate de frente nos conceitos padrão de fraternidade e relacionamento em sociedade. E mesmo assim faz-nos refletir sobre o mundo moderno. Já que, como qualquer morador de Tóquio ou de Nova York, tem na venda de suas lenhas a única preocupação cotidiana – e a felicidade é item secundário.


Onde Fica

O território de Linha Natal foi dividido entre Capitão e Travesseiro quando os distritos se emanciparam de Arroio do Meio, em 1992. A área onde ficava a igreja e a escola pertence a Travesseiro. O local onde moram Boni e Zambiasi fica em Capitão. Os dois municipios, junto com Pouso Novo e Nova Bréscia, formam uma filial da região serrana no Vale do Taquari, com clima úmido, montanhas e 500 metros de altitude em relação ao nível do mar.

Segundo a última contagem de população do IBGE, Capitão tem 2.539 mil habitantes e Travesseiro 2.379. Os dois locais somam 156 quilômetros quadrados de territórios, mais do que o dobro da área de Alvorada, na região metropolitana, que tem 207.142 mil moradores. A baixa densidade demográfica é explicada pela principal atividade econômica dali: a agropecuária. Mais de 80% das propriedades locais têm criatórios de porco. São cidades estranhas a quem mora nos centros urbanos. Onde passam anos sem que aconteça algum crime. Onde todos se conhecem. Onde um vilarejo já teve mais de 70 famílias e hoje é habitado por apenas dois homens.

Um comentário:

Laura Peixoto disse...

Ahhhhhhhh q bacana esse post! Vou chupar p o meu blog!
http://lauramertenpeixoto.blogspot.com/

abraço!