terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A vida do hermitão do bairro Aimoré


Ele é sócio fundador do Curtume Aimoré e dono da última fatia de terras sem construção na área de Arroio do Meio que mais concentra indústrias. Nessa posição, José Koch poderia desfrutar sua aposentadoria tranqüilo, sem preocupar-se com dinheiro. De fato, Koch não se aflinge com isso. Mas está longe de levar o que tradicionalmente se deduz ser uma vida confortável. Aos 88 anos, mora sozinho, sem água e sem luz.

Koch é um dos moradores mais antigos da rua Presidente Vargas, no Aimoré. Sua casa abriga apenas um homem e poucos móveis; mas diversas lendas. Sua rabugice é notória e o fez figura folclórica. Fiscais da Secretaria de Agricultura já precisaram da ajuda da polícia para vacinar o gado de sua propriedade. Motoristas que ousaram entrar em seu terreno para manobrar o caminhão foram recepcionados com insultos e tiros para o alto. Os vizinhos dizem que nunca tiveram problemas pessoais, mas a forma como Koch trata seus animais é motivo de implicância constante. “Cada pouco tempo morre uma vaca. Os bichos estão sempre com fome e chegar a sair do potreiro para se alimentarem do jardim das nossas casas”, reclama uma moradora próxima.

A justificativa de Koch para a fome dos animais mistura inocência, sovinice e desapego: “a ração custa caro, não vale pena”. Se é para animal ficar bonito, que fique só com pasto que ele corta todo o dia às 11h, depois de seu almoço. Talvez esse senhor de pouca altura, postura aprumada e profundos olhos azuis devesse ouvir mais os outros. Progrediria. Assim como iria aprender quem o ouvisse. Mas Koch resignou-se a ser tachado de "velho louco", mesmo por quem não o conhece.

Na verdade, a desconfiança dos outros com Koch é muito maior do que a dele com os outros. Logo que o repórter chega a sua casa, é convidado a sentar-se em uma das três cadeiras azuis que mobilham o cômodo em frente à cozinha. Em poucos minutos, o homem que já foi assunto de dezenas de conversas devido a seu particular modo de vida desembaraça a fumaça que há sobre seu personagem e sorri - e a luz reflete nos dentes de ouro de sua boca.

José, como ele prefere ser chamado, nasceu em Arroio do Meio, “sete metros adentro da rua Dona Rita”. Com poucos meses de idade, se mudou com os pais para outra propriedade, em Passo do Corvo. A casa onde mora agora, construída há 68 anos, foi a terceira pela qual passou. Ao lado do prédio, havia um frigorífico, reduzido, em um dia de vendaval, a um amontoado de tijolos velhos e telhado. Quando a família se mudou para o local, "o Centro de Arroio do Meio era menor do que o bairro Aimoré é hoje."

José, os pais e as duas irmãs ganhavam a vida com a lida na roça, plantando e cuidando de animais. Seu pai faleceu em 1974. A mãe, antes, pouco depois da mudança, em 47. Apesar de quase nonagenário, José Koch continua diante das atividades da propriedade. Só não consegue concertar a cerca do potreiro. Faltam-lhe as ferramentas – nunca a força.

Desde 86, Koch é aposentado. Diz que poderia pagar as contas de água e luz (“Antes de cortarem eu era um dos primeiros a acertar tudo, pode pedir ao gerente do banco”), mas não foi lhe explicado o motivo da suspensão do fornecimeto - e ele nunca tentou sanar problema. Talvez porque os serviços não lhe fazem falta. Os dois baldes de água que ele enche nas torneiras de seu vizinho Curtume Aimoré são suficientes para abastecer seu pequeno consumo. A água para os animais brota da terra, de uma fonte instalada ao lado da casa.

É uma vida boa, diz ele. Tranqüila. Como não tem luz, o sono vem cedo. Há alguns anos, era possível ouvir de casa o sino da Igreja Matriz; agora o barulho dos caminhões e das fábricas abafa as badaladas. Mesmo assim, José Koch dorme até que o apito do curtume chama os funcionários ao trabalho, às 7h15min. Então é hora de levantar, preparar o chimarrão e cuidar das abelhas-mirim que ele cria com carinho em uma caixa de papelão atrás de casa. No ano passado, os insetos produziram um favo enorme, mas José não comeu seu mel. “Fiquei com pena de estragar o trabalho das abelhas”.

Ele diz que estudou até a 5ª série, “mas aprendeu muita bobagem no colégio”. Mesmo assim, exibe uma capacidade mental invejável. “No meu livro de geografia estava escrito que a América do Sul tem 12 milhões de quilômetros quadrados. Está errado. Tem 18 milhões. Só o Brasil e a Argentina têm mais de 12 milhões.” Impressionante quando se pensa que o seu único contato com o mundo é um antigo rádio à pilha vermelho, sempre sintonizado na Rádio Independente. “Ouço Arroio do Meio em Foco e A Voz do Brasil. Nesses programas tem tudo que preciso saber”.

Além do rádio e das cadeira azuis, a mobília da velha casa se resume a um guarda-roupa, sua cama, dois fogões à lenha e uma mesa, adornada por um vaso com margaridas e rosas de plástico. As poucas peças fazem com que a casa de seis cômodos pareça ainda maior. “O telhado engana e parece pequeno de fora”. Os azulejos do piso lembram os da Igreja Matriz. As paredes, um dia brancas, têm cor de café-com-leite depois de 40 anos sem nenhuma reforma. Na sala, está pendurado um quadro de João Paulo II, papa falecido em 2005. “O senhor sabe que ele morreu?”, pergunta o repórter. A resposta - alguns resmungos em alemão e um olhar de criança triste – mostra um lado espiritual desconhecido do ermitão do bairro Aimoré.


Koch morava com a irmã até alguns anos atrás. Ele diz que ela morreu há cinco anos. Um vizinho diz que fazem pelo menos 15. Causa mortis: lepra. Doença que ele também teve, mas se curou. Agora seu estado de saúde é ótimo. Apesar da tontura que o faz interromper por uns minutos a caminhada na última vez que foi comprar comida no Centro, faz mais de um ano que José Koch não vai ao médico.

Quando o assunto é sua propriedade, seu José se envaidece. Logo quer mostrar toda a extensão ao visitante. São oito hectares bem localizados. Mas já foram 12. E esse é o motivo pelo qual empresas que ofereceram altas somas de dinheiro em troca das terras tiveram respostas negativas. Segundo Koch, a área hoje ocupada pela Perdigão também lhe pertencia e, quando houve a desapropriação para a instalação da empresa, ele foi ludibriado e não recebeu “nenhum vintém”. Outra questão que fortalece sua persistência em continuar morando ali, apenas na companhia de suas 11 vacas, é a desconfiança. À exemplo da morte de João Paulo II, Koch acredita que o dinheiro pode desvalorizar pela inflação em um único lampejo, como ocorria entre o final dos anos 80 e o começo da década de 1990.

É complicado desvendar as idiossincrasias de José Koch, calejado pelo trabalho e pela vida. Alguém que nunca se conformou com os padrões da sociedade e com a velhice. Leva a vida como se vivesse a 50 anos atrás, mas sofre do grande mal da sociedade moderno: a solidão.

2 comentários:

Solano disse...

Sempre tive curiosidade de conhecer o morador da casa espremida entre essas empresas do bairro Aimoré..de tanto que se fala nele. valeu a postagem!!!

Solano

Thaiane disse...

Eu também sempre tive curiosidade de saber quem é o senhor que mora naquela casinha verde,e que sempre teimou em nunca vender os seus terrenos.Muito boa a reportagem.Parabéns!