quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A aflição em Marques de Souza

Faltavam três minutos para as duas da tarde quando a chuva voltou a cair em Marques de Souza, na tarde abafada de terça-feira. Na margem do arroio Tigrinho, cerca de cem metros antes da ponte sobre a BR-386, Fátima Bauer nem se importou. Ela tentava desencardir uma camiseta nas águas do arroio quando me viu caminhando em sua direção. “Olha isso aqui. Olha”, disse, antes de desatar a chorar. “Tô tentando deixar limpo tudo o que sobrou da minha casa”.

Eram quatro sacolas de plástico com algumas roupas e toalhas.

Fátima morava em uma das últimas casas da rua Alzira Lammel, no Centro de Marques de Souza. Esse lugar foi um dos mais atingidos pela força da água. Pelo menos cinco casas foram levadas pela correnteza. As que ficaram tiveram sua estrutura comprometida. As paredes de tijolo à vista da casa de Fátima ainda estão lá, mas podem ruir a qualquer momento. Ninguém mais vai poder morar ali. Na casa de sua sogra, nem isso: ficou apenas o barro, os destroços e alguns vasos com orquídeas, as plantas prediletas de dona Iara.

“As vezes choviam oito dias seguidos e não chegava nem perto da quantidade de água que tinha aqui na segunda”, lamentou o pedreiro Aldemir Bauer, da mesma família. Ele morava com a mãe, Iara, e com a companheira. Seu pai vivia na mesma casa até a semana do Natal, quando morreu, infartado. “A gente dividia o espaço, mas tinha tudo separado. Tinha tudo duplo. Duas salas, duas tevês, dois sons. Agora foi”. “Nosso final de ano já tinha sido terrível. Não sei mais o que mais pode acontecer”.

A rua Alzira Lammel termina a 50 metros do arroio Tigrinho. São normais pequenas inundações ali. Mas não da forma como aconteceu no fim da tarde de segunda-feira. Marques de Souza nunca passou por nada parecido com o que aconteceu. Em toda a região choveu o equivalente a um mês em menos de meio dia. E a água caiu especialmente intensa nas cabeceiras dos rios Fão e Forqueta, que, já unidos, passam pelo município. A correnteza era tanta que os moradores especulavam se não havia sido aberta a barragem da hidroelétrica da Certel, no salto do Forqueta. A capital gaúcha dos campings virou um grande lago.

O prefeito de Marques de Souza Rubem Kraemer estimou que 80% da cidade foi comprometida. Dos quatro mil moradores, mil tiveram de deixar suas casas. 120 famílias perderam tudo.

O bairro de nome premonitório, Cidade d´Água, ficou submerso. Na terça, os moradores empilhavam os móveis e eletrodomésticos embarrados na frente das casas para ver o que ainda poderia ser aproveitado. “Quem ver isso aqui aprender a valorizar o que tem”, comentou uma pessoa que passava por ali.

Do outro lado do asfalto, no novo loteamento Brisas do Forqueta, dezenas de árvores, fios e postes de luz foram arrancados. Paredes foram derrubadas. Tijolos de casas ainda em construção se espalhavam pela rua. Um cenário desolador.

No distrito de Tamanduá, pelo menos 40 casas foram atingidas pela enxurrada. Como nos outros locais, muitos perderam tudo. Todos tiveram grandes prejuízos. Acostumado a cobrir tragédias de terceiros, o jornalista, Alicio de Assunção, passou de expectador à vítima. Sua casa ficou debaixo da água. “Tivemos duas enchentes consecutivas aqui. Primeiro pelo arroio Tamanduá, depois pelo rio Forqueta”, contou Alicio. “Foi tudo muito rápido. Em pouco tempo a água tomou conta”.

O distrito tem dois cemitérios. No centenário católico, dos cerca de 200 túmulos, ficaram dois. No evangélico a situação não é muito diferente. Crânios e ossos ficaram espalhados pelo chão, tornando o cenário ainda mais angustiante. Em ambos os locais, a visitação foi proibida.

Tamanduá havia passado por uma grande enchente em 2001, mas a dessa semana foi cinco metros mais alta.

ESSE TEXTO INTEGROU A COBERTURA DO JORNAL O ALTO TAQUARI DA ENXURRADA QUE ATINGIU O VALE DO TAQUARI EM 4 DE JANEIRO DE 2010

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