O som do sino reverbera por vários quarteirões, mas seu efeito é discreto entre os moradores já acostumados. Dentro da torre da igreja, porém, é quase impossível ficar indiferente às badaladas. Ali, onde a rusticidade das paredes de tijolo à vista contrasta com a valorização da arquitetura no lado de fora, o estrondo das toneladas de bronze sendo zurzidas pelo martelo continua soando na cabeça por alguns segundos depois do silencio dos sinos.
Quem vê de perto pela primeira vez se assusta. Dauri Dilso Klein nem nota. A torre da igreja é seu escritório de trabalho. É ali que fica a máquina dos relógios, onde Dauri reina entre engrenagens e ferramentas. O técnico relojoeiro é uma das únicas pessoas do Estado especializada na manutenção de relógios públicos – ou a única, como ele defende.
O inicio de Klein no oficio, claro, foi com um relógio estragado. Em 1998, já faziam dez anos que os ponteiros do templo da comunidade luterana de sua cidade, Marques de Souza, no Vale de Taquari, marcavam o mesmo horário. Klein, proprietário da única relojoaria de Marques de Souza, foi chamado para resolver o problema. “Eu achava que não conseguiria arrumar. Nunca havia visto um relógio com peças tão grande, não tinha nenhuma noção. Sorte que eles insistiram”, conta Klein, com sua fala pausada e correta de professor.
O relojoeiro foi daquelas crianças mais interessadas em desmontar os brinquedos e entender seu funcionamento do que propriamente brincar. Nos fundos de sua casa, instalou um oficina para desenvolver sua imaginação. De lá saíram desde as peças de relógio danificadas pelo tempo até o sistema de som que ele tem instalado na parede de seu banheiro. “Sempre gostei de ouvir notícias quando acordo, mas era muito trabalho levar o rádio”. Técnico em eletrônica pelo Instituto Universal Brasileiro, Klein desenvolveu também um sistema que desligada as batidas do relógio sem interferência no funcionamento dos ponteiros. O mecanismos foi criado para não perturbar os moradores do Centro de Alegrete, onde fica a igreja Nossa Senhora da Conceição Aparecida, cujo relógios estava há 35 anos parado antes de ser consertado.
Klein não é procurado apenas por seu o único a se dedicar ao concerto dos relógios.
Mesmo que houvesse vários profissionais, sua dedicação o destacaria. “A cada seis meses, eu ligo para as comunidades para pedir como está o relógio, insisto para que façam a manutenção”, diz. “Mesmo que o relógio foi construído há 100 anos, se bem cuidado, daqui a mais 100 ainda vai estar funcionando.” O técnico também tem na memória números e dados sobre a antiga fábrica de relógios públicos Schwertner, única na América Latina registrada para a função, que funcionou até o fim dos anos 1990 em Estrela, também no Vale do Taquari. A Schwertner produziu 14 diferentes modelos de relógios. Conforme Klein, todo equipamento instalado na torre das igrejas do Estado é de marca, foi construído artesanalmente ou trazido da Europa.
Por acaso, foi um dos filhos do fundador da empresa o responsável pela propagação do nome de Klein como consertador de relógios públicos. Com mais de 90 anos, Bruno Schwertner ainda era procurado para que arrumar os equipamentos produzidos pelas empresa. “Estou velho, não faço mais e não sei quem o faça”, respondia, até um final de semana de 2003, quando foi a Marques de Souza e viu o relógio construído por seu pai no inicio do século funcionando novamente. Daí em diante, seu discurso com os ex-clientes mudou: “Estou velho, não faço mais, mas sei quem pode fazer”.
Dílson Klein já fez voltarem a funcionar mais de 50 relógios no Rio Grande do Sul, no Paraná e em Santa Catarina. Nos últimos meses sua reputação chegou à região sudeste e ele freqüentemente recebe ligações de lá. As primeiras vezes que passou meses fora de casa para concertar um relógio, chegou a cogitar o abandono do ofício, agora, não consegue mais recusar pedidos. “Me sinto como um médico que pode salvar a vida de alguém e não faz”, exagera.
Uma das cidades onde Klein reviveu o relógio foi Arroio do Meio, no Vale do Taquari. O presidente da comunidade católica Nossa Senhora do Perpétuo Socorro à época, Selomar Schneider, lembra que a comunidade já havia, inclusive, fechado negócio com uma empresa para adquirir por R$ 10 um sistema digital, quando o relojoeiro de Marques de Souza apareceu. “Já havíamos desistido. Mecânico de carro, ferreiro, chapeador, relojoeiro, vários profissionais tinham tentado arrumar, mas não tinha jeito”. Agora, os arroio-meense tem novamente o horário certo na torre da igreja Matriz, uma das mais bonitas da região.
Um dos maiores orgulhos de Klein é a restauração do relógio de Vila Theresa, em Bagé, na fronteira do Rio Grande do Sul. O modelo importado da Alemanha em 1908, funcionava à corda e foi transformado em automático, depois de 50 anos parado. O trabalho durou três meses. Agora, o local será transformado em centro turístico, com recursos privados e através das leis Rouanet e de Incentivo à Cultura. “Aquilo estava abandonado, agora foi transformado em um lugar lindo”, orgulha-se.
Klein sabe que, quanto mais se avança no tempo, mais importância ganham os relógios públicos como relíquia histórica. Em poucos anos, pretende se aposentar e não há ninguém para substituí-lo. Seu sonho é poder fazer uma espécie de escola profissionalizante onde possa ensinar seu ofício a jovens de locais diferentes. A função, ele diz, é fácil, o aspirante precisa apenas ser disciplinado e curioso - qualidades que Dauri Dilso Klein tem de sobra.
Pelas mãos de Klein, o retorno de um símboloOs ponteiros com três metros de envergadura do edifício Chaves Barcellos, na esquina da rua dos Andradas com a General Câmara, no Centro de Porto Alegre, voltaram a marcas as horas através do trabalho de Klein. O relógio, um dos símbolos da capital gaúcha, estava há 40 anos parado. Esse foi o segundo sistema eletrônico que Klein consertou. O trabalho foi estudado por seis meses. As peças, depois, foram produzidas em sua oficina de Marques de Souza e levadas à capital. Em três dias de trabalho, o relógio estava funcionando novamente.
“Não querem recuperar o Centro? Está aí mais uma atração turística. Para mim, ele é o Big Ben de Porto Alegre”, brinca o síndico do prédio comercial de 16 andares, Ernani Farias, que guarda e-mails de pessoas agradecendo a volta do relógio.